No dia 30 de maio de 2025, a Suprema Corte dos Estados Unidos abriu mão do seu papel de guardiã da Constituição para tornar-se cúmplice da exclusão. Autorizou, sem uma única palavra de justificativa, que o governo de Donald Trump revogue os vistos humanitários de mais de 500 mil imigrantes — homens, mulheres e crianças que vivem legalmente no país, sob um regime de proteção reconhecido internacionalmente.
Não estamos falando de deportações comuns. Estamos falando de uma revogação coletiva de esperança, de um decreto que transforma famílias inteiras em descartáveis. Pessoas que fugiram da fome, da guerra, da violência, que foram acolhidas sob regras claras, autorizadas a trabalhar, a viver, a reconstruir.
Agora, essas mesmas pessoas — muitas das quais contribuíram com impostos, com cultura, com trabalho — são tratadas como ameaças. Como problemas. Como “outros”.
Violando tratados, ignorando a própria Constituição
Essa decisão não é apenas moralmente falida. Ela é juridicamente perigosa.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual os Estados Unidos são fundadores, garante o direito de buscar e obter asilo.
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, também ratificado pelos EUA, proíbe a expulsão arbitrária de pessoas legalmente acolhidas.
A própria Quinta Emenda da Constituição Americana assegura que ninguém será privado de liberdade sem o devido processo legal.
Como se encaixa nesse arcabouço a revogação sumária de direitos adquiridos por meio de programas oficiais, como o Parole Humanitário e o Temporary Protected Status (TPS)?
Como pode a Corte Suprema de uma das maiores democracias do planeta permitir que quase um milhão de pessoas sejam tratadas como números descartáveis?
Os Estados Unidos foram feitos por imigrantes — e agora querem se desfazer deles
Este é talvez o ponto mais cruel da história.
Os Estados Unidos não nasceram prontos. Eles foram moldados, tijolo por tijolo, por imigrantes que cruzaram oceanos, desertos e fronteiras, fugindo de perseguições, miséria e guerras. Foram italianos, irlandeses, alemães, africanos escravizados, judeus europeus, asiáticos oprimidos e, mais recentemente, latino-americanos que, juntos, construíram a nação mais poderosa do mundo.
Essa diversidade não foi fraqueza. Foi o motor da inovação, da cultura, da economia. Foi a razão pela qual tantos viam — e ainda veem — a América como uma promessa.
Agora, essa promessa está sendo quebrada por um punhado de políticos que usam o medo como ferramenta e por juízes que se escondem atrás de tecnicalidades para evitar dizer o óbvio: isso é errado.
E os brasileiros? E os nossos?
O Brasil tem quase 2 milhões de cidadãos vivendo nos EUA. Muitos deles com status indefinido, outros aguardando processos, outros ainda sob proteção especial. Estima-se que mais de 30 mil brasileiros estejam diretamente ameaçados por essa nova política de deportações.
São famílias que moram há anos nos EUA. Que abriram negócios, criaram filhos, cuidaram de idosos, limparam hospitais durante a pandemia. Gente que não veio tirar — veio somar. E agora, do dia para a noite, são tratados como ameaça, como peso, como sobra.
As palavras que faltaram à Suprema Corte ecoam na história
Não foi a primeira vez que o silêncio jurídico autorizou a injustiça. Já vimos isso nos tribunais que validaram a segregação racial. Já vimos quando a Corte legitimou a internação forçada de nipo-americanos na Segunda Guerra Mundial. E estamos vendo de novo.
Mas, neste momento, é fundamental lembrar as palavras de Abraham Lincoln, que defendeu a união em meio à guerra:
“Aqueles que negam liberdade aos outros não a merecem para si.”
Ou de John F. Kennedy, que diante do preconceito disse:
“A grandeza de uma nação não se mede pelo poder das armas, mas pela justiça com que trata seus mais fracos.”
Ou ainda de Barack Obama, que diante do medo escolheu a esperança:
“A América é grande não porque é perfeita, mas porque sempre foi capaz de se reinventar.”
O argumento oficial: segurança e nacionalismo
O governo Trump sustenta que os programas de Biden incentivaram “abusos” e comprometeram a segurança nacional. Em discurso recente na Flórida, Trump declarou: “Não podemos manter um país forte se abrirmos nossas portas indiscriminadamente. Essa decisão mostra que os EUA estão voltando à razão.”
No entanto, a medida foi executada por decreto, sem debate legislativo, e chancelada por uma Suprema Corte que optou pelo silêncio institucional, ignorando princípios de legalidade, proporcionalidade e devido processo.
O império da lei contra o delírio autoritário
Como mostram episódios recentes — das tarifas comerciais impostas por ordem executiva ao ataque a universidades e instituições jurídicas — o Executivo de Trump governa por ruptura, não por consenso. Ao afastar o Congresso, fragilizar o Judiciário e hostilizar a imprensa e ONGs, o presidente transforma o Estado em reflexo de sua própria vontade política.
A Suprema Corte, ao abdicar de seu dever de fiscalização ativa, deixa um vácuo institucional perigoso, abrindo margem para que o arbítrio seja legalizado.
Conclusão: Quando uma nação esquece o que a tornou grande, ela começa a encolher
Os Estados Unidos não estão perdendo imigrantes. Estão perdendo algo maior: sua alma.
Quando um país troca compaixão por cálculo político, quando usa o Direito como escudo para a exclusão, quando trata a dignidade humana como moeda de barganha — ele não se fortalece. Ele se enfraquece.
Esta não é apenas uma luta por migrantes. Esta é uma luta pelo que significa ser uma democracia. Ser livre. Ser justo.
E se eu tivesse que dizer algo hoje aos líderes que tomaram essa decisão — e aos milhões que agora têm medo de abrir suas portas —, eu diria com a firmeza de Obama, com a moral de Lincoln, com a coragem de Kennedy:
“A história nos observa. E ela não perdoa os que, tendo poder para fazer o certo, escolheram o silêncio. Ainda há tempo de escolher a decência. Ainda há tempo de ser América de novo.”
Walter Ciglioni
Jornalista e Relações Públicas, graduando em Política Pública na UniDrummond. Membro da Comissão Especial de Direito Constitucional da OAB-SP, além de integrar também as Comissões Especiais de Política Criminal e Penitenciária, Direito Tributário e Direito Internacional. Conselheiro da FIESP e pós-graduando em Gestão Pública. Foi candidato ao Governo do Estado de São Paulo em 2014.
Revogação dos vistos humanitários: até onde vai o poder do presidente diante da Constituição dos EUA? Por Walter Ciglioni
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