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Os bancos brasileiros e a escolha de Sophie – por Cesar Dario

No romance de William Styron, de 1979, Sophie, ao chegar a Auschwitz com seus dois filhos, é obrigada a tomar uma decisão impossível, que, de qualquer forma, seria trágica. Escolher qual dos dois filhos deveria ser entregue aos nazistas para a morte certa e qual sobreviveria.

Os bancos brasileiros estão no mesmo dilema. Obedecem aos ditames da “Lei Magnistky” e bloqueiam contas bancárias e transações dos sancionados ou acatam ordens do Supremo Tribunal Federal e correm o risco de serem penalizados com multas bilionárias e por outros mecanismos instituídos pelo governo norte-americano, que quase com certeza os levarão à falência ou muito perto dela.

Por outro lado, acolhendo as determinações judiciais da Excelsa Corte, a pessoa jurídica não será sancionada no âmbito de uma ação própria e nem seus diretores responsáveis autuados e eventualmente processados por crime de desobediência (1).

E se eu disser que existe solução possível para os bancos na esfera penal, no caso para as pessoas físicas, seus principais diretores.

Falo dos institutos da coação moral irresistível e da inexigibilidade de conduta diversa.

A coação moral irresistível vem prevista no artigo 22 do Código Penal, que dispõe:

“Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”.

Tanto a coação moral irresistível, quanto a obediência hierárquica (quando a ordem não é manifestamente ilegal) são casos de autoria mediata em que o executor material do delito (autor imediato) atua sem culpabilidade ou condições de discernimento e, por essa razão, considera-se que a conduta principal foi praticada pelo autor mediato (coator ou superior hierárquico), que responderá sozinho pela prática delitiva.

A coação de que trata o dispositivo é a coação moral (“vis compulsiva”), pois a física (“vis corporalis”) exclui a voluntariedade e, consequentemente, a conduta e o fato típico.

Há necessidade de que a coação seja oriunda de uma ameaça séria e fundada, que a torne irresistível ao coato. A ameaça pode ser endereçada ao próprio coato (ameaça direta) ou a terceiros a ele ligados por laços de afeição (ameaça indireta), como esposa, filhos, amigos etc.

Na coação moral irresistível o coato tem a sua vontade viciada devido a grave ameaça, que faz com que pratique um fato típico e antijurídico, mas sem culpabilidade, uma vez que não poderia ter agido de maneira diversa.

Com efeito, embora o coato pratique infração penal, estará isento de pena. Somente o coator será responsabilizado penalmente, respondendo pelo crime praticado pelo coato com a agravante prevista no art. 62, II, do CP.

A coação moral irresistível pressupõe a existência de três pessoas: coator, coato e vítima, que sofre a conduta do constrangido. Inclusive, a vítima pode ser a própria coletividade e o Estado, como ocorre nos crimes vagos e nos contra a administração pública e da Justiça. Na atualidade, o exemplo típico de coação moral irresistível ocorre quando são sequestrados familiares de um gerente de banco (coato) e este é obrigado a facilitar o roubo do estabelecimento bancário (vítima), sob pena de os sequestradores (coatores) matarem seus familiares. Destarte, embora o gerente tenha participado do crime de roubo (art. 157, do CP), somente serão punidos os coatores, vez que o coato agiu sem culpabilidade em face da coação moral irresistível.

Não há, pois, como falar em coação moral irresistível provinda da sociedade ou da própria vítima, eis que o instituto pressupõe a existência de um agente coator punível. Isso porque a sociedade não pode delinquir ou ameaçar o sujeito e não há como punir a vítima por ter praticado crime contra si mesma.

Caso a coação moral seja resistível, o coato também será responsabilizado pelo delito, mas incidirá uma atenuante prevista no art. 65, III, c, 1ª figura, do CP.

Na situação em comento, os bancos estão sendo forte e gravemente ameaçados de sanção pelos Estados Unidos da América, representados pelo Departamento do Tesouro, Departamento de Estado e Departamento de Justiça, cada qual com responsabilidade por uma área das sanções.

Cada um desses Departamentos possui um responsável, os respectivos Secretários, pessoas físicas, que para o direito penal são considerados os coatores.

Como os bancos estão sendo ameaçados de serem sancionados por estes Departamentos, ameaças extremamente graves, caso os representantes destas instituições desobedeçam às ordens judiciais emanadas do Supremo Tribunal Federal, estarão com sua vontade submissa à do coator e, por isso, agirão sem culpabilidade, ou seja, sem reprovação social e, assim, estarão isentos de pena para quem acolhe a teoria bipartida de crime ou não cometerão crime para aqueles que adotam a teoria tripartida de crime. De qualquer forma, a solução é uma só, a absolvição ou mesmo o arquivamento do procedimento criminal pelo membro do Ministério Público com atribuição para o caso.

Isso porque o sancionamento pelo descumprimento da “Lei Magnistky” equivale à morte financeira do banco infrator, o que é o pior que pode acontecer com ele, que, decerto, equivale à ameaça indireta a seus diretores responsáveis por sua administração, justificando a ausência de culpabilidade em razão da sua excludente da coação moral irresistível.

O que fazer em um caso desses em que não cumprir as determinações do coator importará quase com certeza a quebra do banco?

Há outra escolha que não o descumprimento da ordem judicial?

Certamente, os bancos escolherão o que lhes trará menos consequências jurídicas desfavoráveis, o que me parece ser pagar as multas impostas pela Justiça brasileira ou as contestar na esfera civil justamente pela ameaça iminente de quebra. E, na seara penal, defender seus diretores, tendo como uma das teses a impossibilidade de agirem de forma diversa.

Evidente que nesta hipótese “sui generis” os Secretários americanos, que apenas fazem cumprir a legislação de seu país, não estão a praticar nenhuma infração penal, nem aqui e nem lá, posto que deve ser observada a legislação do local onde a conduta é praticada. Assim, se no exterior a conduta não é considerada crime, não pode ser punida no Brasil, nos termos do artigo 7º, § 2º, alínea “b”, do Código Penal.

Outra tese que pode ser invocada, para quem aceita a existência de causas supralegais de exclusão da culpabilidade, é a inexigibilidade de conduta diversa, que, do mesmo modo que a coação moral irresistível, exclui a culpabilidade do autor.

E do que se trata esta controvertida causa de isenção de responsabilização penal e de aplicação de pena?

Cuida-se de causa supralegal de exclusão da culpabilidade, não estando, portanto, prevista no ordenamento jurídico.

Muitos doutrinadores defendem que ela se justifica pelo fato de não ser possível ao legislador prever todos os casos em que a culpabilidade possa ser afastada em razão de não ser exigível outra conduta.

Como a inexigibilidade de conduta diversa é um dos elementos da culpabilidade, excluindo-a, não haverá reprovação social e, com isso, não haverá crime para uns ou a aplicação de pena para outros, a depender da corrente adotada para a conceituação de crime (critério tripartido ou bipartido), que não vem ao caso aqui discorrer. No final das contas, a solução é a absolvição daquele que é beneficiado pela referida causa excludente da culpabilidade.

Concordo que esta causa de exclusão da culpabilidade é muito ampla e não está delimitada no ordenamento jurídico, podendo ser aplicada de forma equivocada sempre que o agente não possua defesa.

Contudo, em situações extraordinárias e especiais, ela cai como uma luva, podendo ser reconhecida judicialmente para que não sejam cometidas injustiças.

Na hipótese em questão, qual outra conduta possível para os diretores dos bancos, que não cumprirem as determinações da “Lei Magnitsky” e descumprirem as da Suprema Corte?

Se não o fizerem, a falência do banco é praticamente certa, o que impactará em todo sistema financeiro e será calamitoso para o Brasil e brasileiros, que sofrerão as consequências.

O assunto é controvertido, mas há solução possível de acordo com minha interpretação técnica das normas de direito penal e dos princípios constitucionais que o embasam.

De qualquer forma, mesmo que se entenda ter ocorrido crime de desobediência, a solução é a designação de audiência preliminar e a apresentação de proposta de transação penal pelo Ministério Público aos autores do fato, que normalmente é o pagamento de uma multa e/ou prestação de serviços à comunidade, que, devidamente cumpridas, não ensejará reincidência e os autores continuarão a ser considerados primários.

Enfim, caso o direito penal seja analisado de forma técnica, observada a razoabilidade, não seria o caso de sequer cogitar a existência de crime de desobediência se os bancos aplicarem as sanções da “Lei Magnitsky” no território brasileiro e, por outro lado, descumprirem eventual ordem da Excelsa Corte para a desconsiderarem.

1) O crime de desobediência vem previsto no artigo 330 do Código Penal, que reza: “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”. Pena: detenção de 15 dias a 6 meses, e multa”. Trata-se de crime de pequeno potencial ofensivo, que tramita no Juizado Especial Criminal, que propicia transação penal e, mesmo que oferecida denúncia, a suspensão condicional do processo. Advindo a condenação, dificilmente ensejará a prisão, exceto se se tratar de condenado reincidente. Pela sua diminuta potencialidade lesiva e penas cominadas, não cabe a decretação de prisão temporária e preventiva.

Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.

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