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A reforma fiscal para além dos ajustes pontuais – por Marcos Cintra

A persistência do debate acerca da reforma tributária no Brasil é um testemunho eloquente da disfuncionalidade de nosso arcabouço fiscal. A complexidade do país e de seu regime federativo gerou um sistema que, não obstante, tem sido funcional, ainda que maculado por regressividade litigiosidade e ineficiência. Essas características têm sido os pilares de um sistema que atua como um entrave à equidade social e à estabilidade macroeconômica.

Nessas condições, observa-se, com preocupação crescente, uma inclinação governamental por ajustes pontuais, medidas isoladas que, não raro, geram mais controvérsia do que solução, revelando lamentável ausência de uma visão sistêmica e coerente. As reformas da tributação do consumo, desatrelada da tributação da renda e da propriedade, além de ajustes casuísticos como o do polêmico IOF mostram que o sistema como um todo se encontra desarticulado, a necessitar de uma ampla revisão global. É imperativo transcender a retórica dos “apertos” e dos “ajustes” e abraçar a urgência de uma reforma verdadeiramente ampla, capaz de reestruturar as bases da tributação e do gasto público, sem as contradições que hoje minam a credibilidade das ações estatais. O desafio não é meramente técnico; é, fundamentalmente, político.

O panorama fiscal brasileiro padece de uma enfermidade crônica que transcende a mera questão da arrecadação. O problema fundamental não reside na incapacidade de coletar impostos; pelo contrário, o Brasil ostenta uma das maiores cargas tributárias do mundo, atingindo 33,1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2024, quando considerados todos os entes federativos. Este patamar é significativamente superior à média da América Latina (21,5%) e equipara-se à dos países da OCDE (34%), grupo de nações desenvolvidas. O paradoxo se instala quando se constata que, apesar de tamanha carga, o retorno em termos de serviços públicos de qualidade e infraestrutura se mostra insuficiente, e o déficit fiscal persiste como uma sombra ameaçadora. A questão central, portanto, desloca-se de “quanto se arrecada” para o “como se arrecada, e para como e onde se gasta”.

A verdadeira chaga do problema fiscal brasileiro reside em dois pontos fundamentais: a despesa pública e o elevado hiato tributário, chamado de tax gap. Enquanto a carga tributária se manteve relativamente estável desde 2012 — quando era de 31,3% do PIB — o gasto corrente primário, que desconsidera os investimentos e os juros da dívida, ascendeu vertiginosamente de 30% para 35% do PIB. Esse incremento de cinco pontos percentuais em menos de uma década sinaliza um crescimento descontrolado e insustentável das obrigações do Estado. A dívida pública elevada impulsionou os gastos com juros em 1,3% do PIB, enquanto os investimentos públicos, cruciais para o crescimento futuro, sofreram uma ligeira retração de 0,2% do PIB. É um quadro de asfixia financeira, onde a rigidez das despesas correntes comprime a capacidade de investimento e  alimenta o crescimento da dívida.

Nesse contexto de descontrole da despesa, a principal rubrica a exercer pressão sobre o orçamento nacional é, inequivocamente, a dos benefícios previdenciários e assistenciais. Atualmente, essa área consome quase 16% do PIB, um aumento preocupante de 3,3 pontos percentuais desde 2012. Essa fatia colossal é majoritariamente direcionada a idosos, seja via Regime Geral de Previdência Social (RGPS), regimes próprios de servidores ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Enquanto o Bolsa Família, um dos poucos gastos assistenciais relevantes para não-idosos, representa cerca de 1,5% do PIB, a magnitude dos dispêndios com previdência e assistência social destaca a urgência de uma revisão estrutural profunda. A demografia do Brasil, com um envelhecimento populacional acelerado, projeta um futuro ainda mais desafiador para esses custos, tornando a questão previdenciária um dos pilares incontornáveis de qualquer reforma fiscal séria.

Um dos nós górdios da rigidez previdenciária reside na indexação de cerca de 60% dos benefícios (RGPS e BPC) ao salário mínimo. Embora compreensível sob uma ótica de proteção social, essa vinculação gera um aumento de despesa de aproximadamente R$ 15 bilhões anuais. Tal mecanismo impõe ao governo a constante e árdua tarefa de buscar novas receitas ou cortes em outras despesas, frequentemente as discricionárias, que se tornam cada vez mais exíguas. A remoção dessa indexação aliviaria a pressão orçamentária ainda que por meio de restrições dos benefícios do sistema. É um dilema entre a equidade social pontual e a sustentabilidade de um sistema que deve proteger, mas também incentivar a produtividade e a responsabilidade contributiva.

Adicionalmente, uma análise detida sobre os regimes próprios de previdência, em particular o militar, revela uma notável área de privilégios que desafia a lógica da equidade e da responsabilidade fiscal. Embora o regime dos servidores civis tenha passado por avanços, o militar permanece virtualmente intocado. Caracterizado por aposentadorias precoces, frequentemente por volta dos 50 anos, valores de benefício que superam o último salário da ativa e pensões vitalícias de extrema generosidade, esse regime onera desproporcionalmente o erário. A União, de forma paradoxal, gasta mais com militares inativos e pensionistas do que com aqueles em atividade.

Ainda no espectro das despesas, a situação dos estados e municípios não é menos desafiadora. Seus regimes próprios de previdência já consomem mais de 3% do PIB e projetam um crescimento alarmante, impulsionado pelo aumento esperado do número de aposentados nos próximos anos. Essa realidade impõe a necessidade de que a reforma fiscal não se restrinja à esfera federal, mas que contemple mecanismos de apoio e incentivo para que os entes subnacionais também promovam os ajustes necessários. A interdependência fiscal entre as esferas de governo é um dado inegável da federação brasileira, e qualquer solução duradoura para o desequilíbrio fiscal precisa ser concebida de forma holística, integrando as necessidades e as responsabilidades de cada nível de administração.

Reconhecer que o epicentro do problema fiscal reside nas despesas não implica, contudo, ignorar o lado da receita.

Há, de fato, um vasto espaço para aprimorar o sistema tributário brasileiro, tornando-o mais eficiente e, sobretudo, mais justo, ao mesmo tempo em que se incrementa a receita necessária para fechar o persistente déficit fiscal. O Brasil é um caso anômalo entre as grandes economias globais, caracterizando-se por uma arrecadação excessivamente concentrada em impostos regressivos sobre o consumo, enquanto a tributação progressiva – aquela que onera mais quem tem maior capacidade contributiva, como os impostos sobre renda e patrimônio – é subdimensionada. Essa distorção não apenas impacta a competitividade da produção nacional, mas agrava a já severa desigualdade de renda.

A principal distorção na estrutura de receita reside na estreita base do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Atualmente, a maior parte da arrecadação se concentra sobre a renda média dos trabalhadores formais, enquanto rendas oriundas de lucros e dividendos, bem como diversas aplicações financeiras, são pouco ou sequer tributadas. O resultado é uma progressividade invertida: os mais ricos, por vezes, acabam pagando uma proporção menor de IRPF sobre sua renda total. Estatísticas alarmantes revelam que os 0,1% mais ricos do país chegam a pagar apenas 3,5% em IRPF, uma anomalia que grita por correção em um sistema que se pretenda minimamente equitativo.

No que tange à propriedade, a carga tributária total no Brasil é modestíssima, perfazendo apenas 1,6% do PIB, com foco quase exclusivo sobre imóveis urbanos, via Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). O contraste se agrava quando se analisa a tributação das propriedades rurais, que são flagrantemente subtributadas. Em 2024, o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) arrecadou um irrisório R$ 3,1 bilhões – cifra inferior, inclusive, ao IPTU de uma única cidade como o Rio de Janeiro, que alcançou R$ 5,1 bilhões. Dada a imensa capacidade contributiva dos grandes proprietários rurais e a vasta extensão de terras no país, esse imposto possui um potencial arrecadatório inexplorado. A título de comparação, na Austrália, uma nação com forte setor agropecuário, a tributação sobre a terra gera cerca de 0,6% do PIB, o que, aplicado ao contexto brasileiro, equivaleria a mais de R$ 70 bilhões anuais.

Ainda no espectro das receitas, uma linha de ação que permanece lamentavelmente negligenciada pela pauta governamental reside na efetiva tributação da vastíssima economia subterrânea.

Englobando a evasão fiscal, a sonegação, a economia informal e as complexas redes do crime organizado, estima-se que esse universo movimente facilmente cerca de 30% do Produto Interno Bruto nacional – uma riqueza colossal que, por sua natureza opaca, é alcançada de forma extremamente limitada pelos tributos convencionais sobre renda, consumo ou patrimônio. Esta é uma falha estrutural que drena recursos cruciais para o Estado e agrava a carga sobre aqueles que operam na formalidade.

Neste cenário de evasão sistêmica, a experiência brasileira oferece uma solução de eficácia comprovada: um tributo sobre movimentações financeiras. Tal imposto, como a antiga CPMF, é o único absolutamente insonegável em sua essência, haja vista sua incidência sobre o fluxo monetário, independentemente da sua origem ou destino, o que o torna um instrumento poderoso contra a evasão. O Brasil já empregou a CPMF por cerca de 12 anos com notável sucesso arrecadatório e, mais importante, com um impacto direto na formalização e no combate à sonegação. Em uma reforma ampla, a reintrodução de um tributo dessa natureza, não como adicional, mas como substituto de impostos de difícil fiscalização – como a COFINS, a CSLL e as contribuições laborais e patronais sobre o trabalho, que são fortemente atingidas pela evasão –, representaria um avanço significativo em termos de coerência e justiça fiscal, combatendo a informalidade e ampliando a base tributável de forma equitativa.

É precisamente nesse ponto que reside a maior crítica à abordagem atual do governo. A pauta fiscal tem se pautado por medidas reativas e pontuais, que se assemelham mais a “curativos” do que a uma cirurgia reparadora. Observamos, nos últimos meses, o governo federal empenhado em batalhas políticas por ajustes fiscais relativamente modestos para sustentar um arcabouço fiscal já fragilizado. A polêmica em torno de iniciativas como a reversão de alterações do IOF ou a retirada da isenção do imposto de renda sobre investimentos como LCI (Letras de Crédito Imobiliário) e LCA (Letras de Crédito do Agronegócio) é paradigmática. Tais debates, embora importantes em si, desviam o foco da necessidade premente de reformas fiscais muito mais profundas e relevantes. A energia política consumida nessas discussões pontuais deveria ser canalizada para o debate das grandes transformações estruturais.

A legislação, como a LC 214/2025 que se propõe a regulamentar aspectos da reforma tributária, por vezes, carece de clareza e de uma articulação inequívoca com o objetivo maior de construir um sistema consistente. A manutenção de certas exceções, por exemplo, como a do IPI para a Zona Franca de Manaus (ZFM) — um mecanismo legítimo de proteção regional, mas que deve ser devidamente compensado e transparente em um sistema que busca a simplificação —, precisa ser parte de uma arquitetura maior, e não uma ilha isolada. Acreditar que a consolidação das contas públicas será alcançada com medidas isoladas e que frequentemente recuam sob pressão política é uma ingenuidade perigosa.

O Brasil precisa urgentemente de um ajuste fiscal, incluindo o tributário e o orçamentário, que vá muito além de medidas conjunturais e paliativas. A consolidação das contas públicas exige atacar, de forma corajosa e sistêmica, os principais motores estruturais do desequilíbrio: o crescimento descontrolado do gasto obrigatório, a rigidez e o financiamento da previdência (com uma atenção especial aos regimes próprios e ao militar), e a baixa progressividade de um sistema tributário que penaliza a produção e a competitividade.

A janela de oportunidade para esse debate está aberta, talvez como nunca. Não podemos nos dar ao luxo de desperdiçá-la com discussões fragmentadas e soluções que não enfrentam a raiz do problema. A credibilidade do arcabouço fiscal, e consequentemente, a capacidade de o país trilhar um caminho de crescimento sustentável dependerão de nossa capacidade de construir um consenso e implementar uma reforma que seja, de fato, transformadora.

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