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Não está fácil – por Cesar Dario

Como todos sabem, houve pedido expresso da Polícia Federal para o monitoramento pessoal do ex-presidente Bolsonaro dentro de sua própria casa.

Felizmente, a medida foi indeferida em razão de sua absurdez por violar o que há de mais sagrado na vida das pessoas, a intimidade familiar.

De forma sucinta, a intimidade pode ser definida como o direito de estar só, o direito ao recato, de não ser importunado e de poder resguardar seus segredos. Fundamenta-se justamente em aspectos que interessam apenas às pessoas que dela participam. São fatos da vida que o indivíduo não deseja tornar públicos, porque não importam ao conhecimento alheio e cuja revelação pode gerar vexame, embaraço ou constrangimento.

Enquanto a intimidade representa o círculo mais restrito da vida pessoal, a vida privada constitui uma esfera mais ampla, embora igualmente protegida pelo ordenamento jurídico. Esta diz respeito ao cotidiano do indivíduo, mas sem atingir as camadas mais profundas da intimidade.

A casa, por sua vez, é o que há de mais íntimo na vida das pessoas. Não é possível falar em direito à intimidade sem mencionar o lar. É nele que os indivíduos passam a maior parte de suas vidas, guardam seus segredos e encontram refúgio do mundo exterior. A residência é o espaço em que cada um pode recolher-se ao seu “eu” e exercer plenamente o direito de estar só.

Por essa razão, a inviolabilidade do domicílio é expressamente assegurada pela Constituição Federal, bem como pelo Código Penal, que tipifica como crime a invasão da casa alheia fora das hipóteses legais.

Com efeito, sem o consentimento dos moradores, só é possível ingressar em domicílio em caso de flagrante delito, desastre, para prestar socorro, ou ainda, durante o dia, por ordem judicial (art. 5º, XI, da CF, e art. 150, § 3º, do CP).

Ressalte-se que a ordem judicial para entrada ou permanência no interior da residência só pode ser cumprida durante o dia. À noite, apenas nas hipóteses excepcionais de flagrante, desastre ou socorro. Isso porque, além do monitorado, outros familiares residem no local, o que torna a medida ainda mais grave.

Aliás, o agente público, seja quem for, que invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei, comete crime de abuso de autoridade (art. 22, da Lei nº 13.869/2019).

Muito embora os policiais não estejam plantados dentro da casa de Bolsonaro, estão em seu quintal, isto é, dependência de sua casa, que também é protegida pelo direito, tanto que comete crime de violação de domicílio ou de abuso de autoridade (quando o agente é funcionário público no exercício de suas funções) não só quem invade a casa fora das hipóteses permitidas em lei, mas igualmente quem ingressa indevidamente no quintal da casa ou em outros locais a ela contíguos, como também expressamente consignado no artigo 150 do Código Penal, que diz:

Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa”.

Com efeito, para o ingresso nas dependências da casa sem que haja a tipicidade formal e material, são exigidas as mesmas hipóteses para que se adentre em seu interior.

Uma dessas hipóteses é a ordem judicial. Entretanto, ela só é possível no período diurno e nunca no noturno, como está ocorrendo, vez que a vigilância é realizada durante 24 horas ininterruptamente.

Mesmo que se entenda que o quintal ou terreno da casa não são protegidos pela inviolabilidade, assim mesmo a intimidade dos residentes está sendo constantemente invadida com os policiais ali prostrados e, ao que consta, nem a esposa de Bolsonaro e nem a sua filha menor cometeram qualquer ilícito e não podem ser punidas por ato de terceiro.

Ademais, com policiais a todo momento vendo o que se passa nos arredores na residência de Bolsonaro e de sua família, dentro de seu quintal, inclusive revistando porta-malas dos carros de todos que saem do local, certamente dão um jeito de olhar o que ocorre no interior da casa, mesmo que de forma dissimulada, o que representa, de semelhante modo que a indevida invasão física, flagrante violação da intimidade dos moradores. Seria muita ingenuidade acreditar que isso não esteja ocorrendo.

Tal situação importa manifesta violação à imagem, intimidade e até mesmo a honra dos demais ocupantes da casa, que nada fizeram para serem tão intensamente lesados em direitos fundamentais, que permite indenização por dano moral e material, nos exatos termos do que dispõe o artigo 5º, inciso X, da Magna Carta:

“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”.

Se realmente houvesse a necessidade de um monitoramento tão intenso, a ponto de policiais permanecerem praticamente dentro da casa de Bolsonaro, algo absolutamente inédito em nosso ordenamento e juridicamente impossível, isso importaria a existência de perigo concreto de fuga de tal magnitude que justificaria, em verdade, a decretação da prisão preventiva.

Enfim, tudo seria tão simples se o arcabouço constitucional e legal fosse observado e não se criassem situações tão esdrúxulas, que fica até difícil comentar tecnicamente.

Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.

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