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Que cada um tire a sua conclusão – por Cesar Dario

Fica muito difícil de entender o porquê de tecnicamente o STF, de uma hora para outra, resolver alterar questão já decidida e que perdurava desde 1999, ampliando novamente o rol das pessoas que serão julgadas criminalmente por ele.

Refiro-me àquelas que ocupavam cargo que lhes dava prerrogativa de foro que, após 1999, deixado o cargo, passaram a ser julgadas de acordo com a regra geral de competência, isto é, pelo magistrado de primeiro grau, exceto se já possuísse a prerrogativa de foro pelo exercício de outro cargo (promotor de justiça, p. ex., que é processado criminalmente perante o Tribunal de Justiça de seu Estado), todos com direito a uma infinidade de recursos.

Vou fazer um retrospecto desde 1999 até os dias atuais para verificarmos o que ocorreu.

Em 25.08.1999, o Supremo Tribunal Federal, julgando questão de ordem, decidiu cancelar a Súmula 394. Dizia a súmula: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

De tal forma, com o cancelamento da Súmula 394, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os inquéritos e processos que apuram infrações penais, cometidas por ex-ocupantes de cargos que detinham prerrogativa de foro, passarão a tramitar de acordo com a regra geral de competência.

Nesta mesma linha de entendimento, visando reduzir os julgamentos pela Excelsa Corte em matéria criminal e fazer valer o sistema vigente em nossa Carta Constitucional, foram julgados inconstitucionais os §§ 1º e 2º do art. 84 do Código de Processo Penal, dispositivo que tentava ressuscitar a Súmula 394/STF e, ainda, ampliar o foro por prerrogativa de função para as ações de improbidade administrativa.

Previa o art. 84, § 1º do Código de Processo Penal que a competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevaleceria, ainda que o inquérito ou a ação penal tivessem sido iniciados após a cessação do exercício da função pública.

De acordo com essa norma, se o ocupante de cargo público com prerrogativa de foro fosse acusado de ter cometido crime relacionado ao exercício de suas funções administrativas, continuaria com a prerrogativa de foro para esse caso, mesmo após cessado o exercício da função pública.

Já o art. 84, § 2º, do Código de Processo Penal dispunha que a ação de improbidade administrativa, de que trata a Lei 8.429/1992, seria proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, devendo ser observado o disposto no § 1º do mesmo artigo, ou seja, permaneceria a prerrogativa de foro para esse caso mesmo após o término do exercício da função pública.

Todavia, de maneira lógica e sensata, observando nosso sistema constitucional, os §§ 1º e 2º do art. 84 do Código de Processo Penal foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal por 7 votos a 3 (ADI 2797, j. 15.09.2005, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, pleno, m.v.). Decidiu a maioria dos Ministros que a competência do Supremo Tribunal Federal e dos demais Tribunais é de direito estrito e decorre da Constituição Federal e das respectivas Constituições dos Estados (no caso de Tribunais de Justiça) e se restringe aos casos nelas enumerados. A Constituição Federal não prevê a prorrogação da competência dos Tribunais após o término do exercício da função pública e nem engloba a prerrogativa de foro no caso de ação civil por improbidade administrativa. Com efeito, não pode o Código de Processo Penal, que é lei ordinária, sobrepor-se à Constituição Federal e modificar a competência dos Tribunais nela regulada, que é matéria de cunho eminentemente constitucional.

E, no ano de 2018, com a composição muito parecida com a atual, novamente o STF deu um passo importante para restringir a prerrogativa de foro dos parlamentares federais. No que tange a eles (Deputado Federal e Senador), a prerrogativa de foro restou limitada aos delitos cometidos no exercício do mandato e em razão das funções desempenhadas (crimes funcionais), excluindo os demais, que deverão ser julgados de acordo com a regra geral de competência (STF: AP 937/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, m.v., j. 03.05.2018).

Assim, o Deputado Federal ou Senador que tenha cometido delito de competência originária do juízo de primeiro grau, continuará nele a ser processado, não havendo o deslocamento da competência após sua diplomação, como outrora ocorria. Mesmo que o Parlamentar Federal cometa o crime já no exercício do mandato (após a diplomação), caso não possua relação com suas funções parlamentares, será julgado no juízo de primeiro grau, de acordo com a regra comum.

O fundamento da alteração jurisprudencial, segundo o relator, é:

Para assegurar que a prerrogativa de foro sirva ao seu papel constitucional de garantir o livre exercício das funções – e não ao fim ilegítimo de assegurar impunidade – é indispensável que haja relação de causalidade entre o crime imputado e o exercício do cargo. A experiência e as estatísticas revelam a manifesta disfuncionalidade do sistema, causando indignação à sociedade e trazendo desprestígio para o Supremo”.

Contudo, por motivo tecnicamente desconhecido, vez que a questão já havia sido discutida por ao menos duas vezes, praticamente tudo voltou como era antes de 1999, ressuscitando os fundamentos da revogada Súmula 394/STF.

Destarte, aquele que possuir prerrogativa de foro, deixado o cargo, continuará a ser investigado e processado pelo tribunal até então competente para julgá-lo, exceção feita aos parlamentares federais se a infração não possuir relação com suas funções, que passarão a ser investigados e processados, em regra, pelo magistrado de primeiro grau, juiz natural da causa.

E quem deixar cargo que lhe dava prerrogativa de foro e esteja sendo investigado ou processado continuará a sê-lo perante a Suprema Corte, o que dá a entender que não conseguirão se desvencilhar e, mesmo que renunciem, peçam exoneração, aposentem ou simplesmente não sejam reeleitos por algum motivo, a prerrogativa de foro continuará. Para uns será excelente, já que a quantidade de investigações ou processos que prescrevem pelo decurso do tempo é enorme. Por outro lado, para outros, por razões que não me cabe aqui falar, é péssimo, vez que não serão julgados por magistrado de carreira e com uma infinidade de recursos, o que não ocorre quando se é julgado originariamente no STF, não havendo a quem mais recorrer.

Com isso, Bolsonaro e todas as demais pessoas investigadas ou acusadas por crimes cometidos no exercício da função ou em razão dela, bem como todos os demais participantes dos atos de 8 de janeiro, continuaram a ser investigados e processados perante o STF, o que até então não deveria ocorrer, vez que os processos deveriam ser remetidos à primeira instância de acordo com a regra geral de competência para quem não tivesse prerrogativa de foro e inexistisse alguém com ela acusado pelos mesmos delitos, o que atrairia a competência da Excelsa Corte.

Dizer que o sistema anterior trazia insegurança e instabilidade jurídica, o que ocorria desde 1999 sem nenhum questionamento, pior, com a redução ainda mais acentuada da prerrogativa de foro para os crimes sem relação com as funções exercidas pelos parlamentares federais, não me parece argumento técnico defensável, vez que a própria Corte já havia decidido que a Constituição Federal não prevê a prorrogação da competência dos Tribunais após o término do exercício da função pública e, de lá para cá, nada mudou e tampouco houve alteração constitucional.

Que cada um tire a conclusão que quiser, mas, com o devido respeito, tecnicamente não se sustenta a decisão que praticamente restaura o sistema anterior, que aumentava demasiadamente os julgamentos criminais da Suprema Corte, que deveria se limitar a analisar matéria eminentemente constitucional (vide link abaixo), acarretando a prescrição de inúmeros crimes, cujos processos se arrastam por anos, com exceção de alguns, que são julgados na velocidade da luz.

Por esses motivos, o melhor seria que se acabasse com a prerrogativa de foro para todas as pessoas ou que fosse limitada apenas para os chefes de Poder, e que se altere a competência da Excelsa Corte para que analise apenas matéria constitucional e não ações penais, passando a ser uma Corte Constitucional como a maioria das existentes pelo mundo afora.

Para o melhor entendimento do tema, vide:

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-modelo-de-suprema-corte-brasileiro-e-o-mais-adequado/1989438877

Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.

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