Não se sustentam mais as versões que circularam na época. “Jânio renunciou para voltar nos braços do povo”. “Estava de porre ou de ressaca”. “Quis fechar o Congresso Nacional”.
“Fui vencido pela reação e assim deixo o governo” escreveu em sua carta de renúncia, na manhã de 25 de agosto de 1961. “Forças terríveis levantaram-se contra mim e me intrigam e difamam, até com a desculpa da colaboração”. “Se permanecesse” prossegue “não manteria a confiança e a tranquilidade, ora quebradas e indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio mesmo que não manteria a paz pública”.
Um dia antes. No dia 24 de agosto de 1961, o governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda afirmou, com a retórica poderosa de quem era o maior orador do país, ter sido convidado por Jânio para participar de um golpe de estado. A fúria do discurso decorreu de um episódio ocorrido na véspera. Por meio da primeira-dama, dona Eloá, Lacerda fez com que Jânio o convidasse ao Palácio da Alvorada. “Venha jantar. Terei o enorme prazer de hospedá-lo no palácio”, prometeu o presidente.
O recado que Lacerda queria passar era que Jânio mudasse a sua política externa, que se abria para a China, Cuba e a União Soviética e que culminou com a condecoração de Che Guevara, em julho, com a Ordem do Cruzeiro do Sul. O governo americano, temeroso de que se repetisse o golpe comunista de dois anos antes, em Cuba, pressionava os militares brasileiros. Sabendo de antemão o objetivo de Lacerda, Jânio resolveu dar-lhe uma lição.
Ao chegar ao Alvorada, Lacerda foi recebido pelo mordomo. “O presidente está assistindo a um filme no cinema do palácio. Pediu para não ser interrompido. Pode deixar a sua mala comigo”. Não restou a Lacerda o que fazer senão esperar. Algum tempo depois, Jânio aparece e o recebe efusivamente. Lamenta, no entanto, não poder oferecer-lhe um jantar: o cozinheiro já tinha ido embora. “Mas temos alguns sanduíches”, disse Jânio a um incrédulo governador, que começou a sentir cheiro de queimado.
Enquanto Lacerda matava a fome, Jânio entrou numa sala, de onde telefonou para o ministro Pedroso Horta. Pediu-lhe que ele ligasse para o Alvorada e chamasse Lacerda. O telefone tocou, o mordomo disse ao governador que era o ministro. “Meu caro governador” disse Pedroso Horta, seguindo as instruções de Jânio “peço que compareça à minha residência”. “Não posso” disse Lacerda “sou convidado do presidente, não posso lhe fazer essa desfeita”. “Pois lhe peça que o libere” sugeriu o ministro.
Dito e feito. Lacerda pediu licença ao presidente, este a concedeu e lá foi o governador ao compromisso fora de agenda. Não se conhece os detalhes da reunião, mas o mais provável é que Pedroso Horta tenha jogado conversa fora com a intenção de manter Lacerda longe do Alvorada o maior tempo possível. Despediram-se amistosamente já ao romper da madrugada.
De volta ao palácio, onde deveria pernoitar depois de, finalmente, conversar tête-a-tête com o presidente, Lacerda foi surpreendido pelo mordomo. “O presidente já se recolheu” disse ele, ao mesmo tempo em que devolvia a mala ao governador. “Pediu para o senhor procurar um hotel”.
Mais colérico do que costumava ficar, Lacerda correu para o Hotel Nacional, de onde disparou telefonemas para altas autoridades, queixou-se da humilhação e xingou Jânio até à última geração. E prometeu vingança. A vingança foi a denúncia de golpe, nessa mesma noite, na TV.
Jânio sabia que Lacerda não falava só em seu nome, mas em nome do establishment militar.
Também sabia que não poderia fazer com os chefes militares a travessura que fez com seu desafeto. Mas passou um recado ao aproveitar o Dia do Soldado para condecorar o ministro da Guerra, Marechal Odílio Denis e em seguida cair fora.
Com Jango em viagem à China, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzili assume o poder. E já chega chegando. Em vez de esperar a volta daquele que deveria ser o presidente de fato, Mazzili, alinhado com a cúpula militar, demite todos os ministros civis e nomeia o general Ernesto Geisel para a chefia da Casa Militar. Três dias depois da renúncia, Jânio parte, com a família, para o exílio, na Inglaterra, tal como era a tradição de presidentes despojados do poder, na Velha República. Mais um sinal de que não renunciou; foi derrubado.
No dia seguinte, 29 de agosto, uma comissão, integrada inclusive pelo deputado integralista Plínio Salgado, é formada no Congresso para discutir o impedimento de Jango, que a essa altura estava em Paris, “costeando o alambrado”, e sob risco de ser preso se voltasse ao Brasil. Há uma crise militar. Tropas do II Exército são deslocadas para abortar uma rebelião do III Exército, sediado no Rio Grande do Sul. O governador Leonel Brizola distribui armas para a população resistir ao golpe e cria a Rede de Rádio da Legalidade.
O ritmo de acontecimentos é frenético. No primeiro dia de Setembro o marechal Odílio Denis, condecorado por Jânio alguns dias antes, afirma publicamente que os militares vetam a posse de Jango, confirmando o golpe militar em curso. A última palavra sobre o destino do país vem dos quartéis, não do Congresso Nacional, que atua como correia de transmissão dos golpistas.
“Encontrem uma solução, virem-se”, diz a cúpula fardada aos parlamentares, reafirmando a ruptura do regime democrático. Também atropelando o estado de direito, em apenas três dias o Congresso Nacional derruba o presidencialismo e o troca pelo parlamentarismo, no qual Jango seria a rainha da Inglaterra.
Ele topa mesmo assim. Acha que pau que nasce torto um dia se endireita. Enganou-se. Nunca saiu do foco dos militares. Enquanto presidente sem poder – mandava o primeiro-ministro, Tancredo Neves, que renunciou um ano depois – foi deixado em paz, mas quando um plebiscito restabeleceu o presidencialismo, em 1963, e ele se fortaleceu, começou a contagem regressiva para o golpe militar que o derrubaria a 1o de abril de 1964.
Foram três anos de gestação. Ninguém dá um golpe de um dia para o outro.